A ciência conseguiu identificar a base neurológica da
sabedoria.
A partir da meia-idade as pessoas podem até esquecer nomes,
mas
tornam-se – acredite – mais inteligentes
MARCELA BUSCATO. COM BRUNO
SEGADILHA E TERESA PEROSA
A partir
de certo momento da vida, que, para a maioria de nós, começa depois do
aniversário de 40 anos, a grande questão neurológica se resume a uma pergunta:
aonde diabos foram parar todos os nomes que eu esqueço? No início, desaparece o
nome de uma atriz famosa. Depois, some o nome dos filmes que ela fez. Mais
adiante, você não consegue achar no mar de neurônios o nome do famoso marido
dela, muito menos o do outro ator, manjadíssimo, com quem ela contracenou em
seu trabalho mais célebre. A débâcle ocorre no almoço de domingo em que você se
percebe, diante da cara divertida de seus filhos, tentando explicar: “Aquele
filme, com aquela atriz australiana, casada com aquele outro ator...”.
Essa você já sabe – ou vai
descobrir dentro de algumas décadas –, é a parte chata de um cérebro que bateu
na meia-idade. Ela vem junto com muitas piadas e uma dose elevada de ansiedade
em relação ao futuro. O que você não sabe, mas vai descobrir nas próximas
páginas, é que existe outro lado, inteiramente positivo, das transformações
cerebrais trazidas pelo tempo. “Conforme envelhecemos, o cérebro se reorganiza
e passa a agir e pensar de maneira diferente. Essa reestruturação nos torna
mais inteligentes, calmos e felizes”, diz a americana Barbara Strauch, autora
de O melhor cérebro da sua vida. O livro, recém-lançado no Brasil pela editora
Zahar, reúne argumentos que fazem a ideia de envelhecer – sobretudo do ponto de
vista intelectual – bem menos assustadora do que costuma ser.
Editora de saúde do jornal The
New York Times, um dos mais influentes dos Estados Unidos, Barbara resolveu
investigar o que estava acontecendo com seu cérebro. Aos 56 anos, estava
cansada de passar pela vergonha de encontrar um conhecido, lembrar o que haviam
comido na última vez em que jantaram juntos, mas não ter a mínima ideia de como
se chamava o cidadão. Queria entender por que se pegava parada em frente a um
armário sem saber o que tinha ido buscar. Barbara não entendia como o mesmo
cérebro que lhe causava lapsos de memória tão evidentes decidira, nos últimos
tempos, presenteá-la com habilidades de raciocínio igualmente surpreendentes.
Ela sentia que, simplesmente, “sabia das coisas”, mas, ao mesmo tempo, se
exasperava com a quantidade imensa de nomes e referências que pareciam estar
sumindo na neblina da memória. Como pode ser?
A capacidade de manter
informações enraizadas em nossa mente não sofre dano algum com a passagem do
tempo
É provável que essa mesma
pergunta já tenha passado pela cabeça de muitos que chegaram aos 40 anos rumo
às fronteiras da meia-idade, um período cada vez mais dilatado em que podemos
passar um tempo enorme de nossa existência. Com o aumento da expectativa de
vida, a fase intermediária da vida, entre os 40 e os 68 anos, tornou-se uma
espécie de apogeu. Nesses anos é possível aliar o vigor reminiscente da
juventude à sabedoria da velhice que se insinua – desde que se saiba
identificar, e abraçar, as mudanças que acometem o cérebro maduro. Ele já não é
o mesmo que costumava ser. Mas as mudanças o transformaram num instrumento
melhor. “Para o ignorante, a velhice é o inverno; para o sábio, é a estação de
colheita”, diz o Talmude.
A jornalista Marília Gabriela,
considerada a melhor entrevistadora do país, é especialista nas delícias e nos
suplícios de um cérebro de meia-idade: “Eu não sei se é a idade ou se é o
excesso de informações, mas eu esqueço o que as pessoas me dizem”. Aos 63 anos,
Gabi, como é mais conhecida, pode até se esquecer de detalhes de conversas, mas
mantém o raciocínio afiado para encurralar políticos e celebridades nos três
programas apresentados por ela semanalmente. “Hoje, sou capaz de fazer análises
rápidas sobre aspectos que as pessoas nem precisam me explicar”, afirma. “Leio
nas entrelinhas, pego pelo olhar.”
A nova ciência do envelhecimento,
retratada por Barbara em seu livro, conseguiu decifrar o caráter das mudanças
por trás dessas percepções aparentemente contraditórias. Os pesquisadores
aproveitaram a popularização das técnicas de ressonância magnética – nos
últimos 15 anos, o número de estudos aumentou dez vezes – para flagrar o
cérebro em pleno funcionamento. Eles descobriram que, sim, há um desgaste
natural das células nervosas como se pensava. Mas ele é localizado e
circunscrito, assim como seus prejuízos à mente.
Um estudo feito pela equipe do
neurocientista americano John Morrison, da Escola de Medicina Monte Sinai, em
Nova York, analisou o que acontece com alguns pequenos botões localizados no
corpo dos neurônios. Eles ajudam a captar as informações. Os cientistas descobriram
que apenas um tipo desses botões sofre com o envelhecimento. São os menores,
envolvidos no processamento de novas informações – onde parei o carro, onde
estão as chaves ou como chama a nova namorada do meu amigo? Quase 50% desses
receptores perdem a atividade. Mas outro tipo, encarregado de lembrar de
grandes acontecimentos e de informações enraizadas em nossa mente, como
habilidades profissionais, não sofre dano algum.
Se alguns neurônios podem ser
danificados pelo tempo, há outros – até mesmo regiões inteiras do cérebro – que
passam a funcionar melhor. “O raciocínio complexo, usado para analisar uma
situação e encontrar soluções, é aprimorado”, diz o psiquiatra americano Gary
Small, diretor do Centro de Envelhecimento da Universidade da Califórnia em Los
Angeles.
Aos 49 anos, o artista plástico
Vik Muniz está no auge de sua carreira. O sucesso, claro, é consequência da
carreira produtiva iniciada aos 20 anos. Mas as habilidades aprimoradas por seu
cérebro ao longo dos anos também têm seu quinhão de influência sobre o sucesso
recente. Em 2008, foi o primeiro brasileiro a organizar uma mostra no museu de
arte moderna de Nova York, o MoMa. Em 2007, começou o projeto Fotografias do
Lixo no Jardim Gramacho, uma comunidade de catadores de lixo no Rio de Janeiro.
Muniz recriou os personagens que encontrou e produziu algumas de suas mais
belas obras. O processo de trabalho foi filmado e virou o documentário Lixo
extraordinário, que concorreu ao Oscar da categoria neste ano.
“Agora, sou uma pessoa mais focada e objetiva.
Vou diretamente aos assuntos, não tenho tempo a perder”, diz Muniz. “Em poucos
minutos de conversa já sei, por exemplo, com quem conseguirei desenvolver uma
relação mais íntima.”
Um casal de pesquisadores
comprovou o que Barbara, Gabi e Muniz sentem na prática. Os psicólogos
americanos Warner Schaie e Sherry Willis, professores da Universidade de
Washington, criaram em 1956 um projeto de pesquisa para acompanhar o
desenvolvimento de 6 mil voluntários durante décadas. Esse tipo de estudo é o
mais preciso que existe, uma vez que permite aos cientistas avaliar quanto uma
pessoa amadureceu emocionalmente e quais habilidades cognitivas aprimorou.
A cada sete anos, Warner e Sherry
submetiam os voluntários a uma bateria de testes de inteligência. Eles tinham
de responder a questões que mediam a habilidade verbal (encontrar sinônimos
para uma palavra), a memória verbal (lembrar palavras lidas em uma lista), a
orientação espacial (virar símbolos e objetos), a capacidade de resolver problemas
(completar sequências lógicas) e a habilidade numérica (problemas de adição e
subtração).
Entre os 40 e os 60 anos, as habilidades verbal
e de resolução de problemas melhoram muito
A compilação de anos de estudo mostrou que os voluntários tiveram melhor
desempenho em três habilidades – verbal, espacial e resolução de problemas –
entre os 1940 anos e 1960 anos. Após esse período, havia um declínio nítido na
pontuação dos voluntários. Mas cada pessoa apresentava um declínio maior em uma
ou duas habilidades, nunca em todas as cinco.
No auge da vida
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Pesquisadores acompanharam 6 mil voluntários por 50 anos. Descobriram
que habilidades associadas à inteligência chegam ao ápice na meia-idade
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Fontes: Schaie, K. W. & Zanjani, F. (2006). Intellectual development across adulthood,
In c. Hoare (Ed.), Oxford handbook of adult development and learning. (pp. 99-122) New York: Oxford University Press
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As transformações do cérebro que explicam a melhora das habilidades
cognitivas durante a meia-idade estão entre as descobertas mais interessantes
da ciência nos últimos tempos. Elas revelam as origens biológicas da sabedoria
trazida pela maturidade. Os cientistas descobriram que a facilidade para
raciocínios complexos pode ser explicada por mudanças físicas no cérebro. A
camada de mielina, um tipo de gordura que reveste as células nervosas e faz com
que as informações viagem mais rápido, aumenta progressivamente com o passar
dos anos e atinge seu pico por volta dos 50 anos. “No começo da vida, os
circuitos motores e os encarregados pela fala recebem a maior parte da
mielina”, diz o neurologista George Bartzokis, pesquisador da Universidade da
Califórnia, responsável pela descoberta. “À medida que envelhecemos, os
circuitos que permitem analisar contextos e que nos fazem ficar mais espertos
são os que recebem mais mielina.”
Os pesquisadores também descobriram que, conforme envelhecemos, mudamos
o padrão de ativação cerebral. Isso significa que acionamos áreas diferentes
das usadas anteriormente para fazer as mesmas tarefas. A região frontal do
cérebro, encarregada da racionalidade, passa a concentrar a maior parte das
atividades. A área posterior da cabeça, onde estão algumas das estruturas
ligadas a nossas respostas emocionais, é acionada com menos frequência. Outra mudança
significativa: para realizar a mesma tarefa de adultos jovens (de até 30 anos),
os mais velhos usam mais áreas do cérebro. Em vez de usar regiões de apenas uma
metade do cérebro, passam a usar as duas. Os cientistas ainda não estão certos
sobre o que essas mudanças representam. Há duas possibilidades. A primeira,
menos agradável, é que o cérebro esteja ficando velho a ponto de não reconhecer
mais as áreas encarregadas de cada atividade. A segunda hipótese é mais
reconfortante: o cérebro pode, sim, estar ficando velho. Mas, ao redirecionar
funções para áreas diferentes e para mais regiões, dá mostras de que é capaz de
se adaptar e manter seu bom funcionamento.
“Não sabemos qual das duas hipóteses é verdadeira”, diz a neurocientista
Cheryl Grady, pesquisadora da Universidade de Toronto, no Canadá, e uma das
primeiras a notar mudanças no padrão de ativação. “Provavelmente, as duas estão
certas. Para algumas tarefas, o cérebro pode perder a precisão. Para outras,
pode usar mecanismos compensatórios.”
É irresistível pensar que, talvez, a superativação do cérebro,
representada pelo uso simultâneo de várias áreas, possa estar por trás das
melhoras de raciocínio relatadas por quem está na meia-idade – e comprovadas
pelos pesquisadores. Os cientistas descobriram que um sistema muito especial do
cérebro, formado por circuitos localizados em camadas profundas do órgão, está
constantemente ativado nos adultos de meia-idade. O sistema, chamado de modo-
padrão, é usado nos momentos de reflexão, quando pensamos sobre o que aconteceu
recentemente, fazemos balanços e traçamos planos para nós mesmos. Os
pesquisadores concluíram que os adultos simplesmente não conseguem desligar o
modo-padrão, algo que os jovens fazem quando estão envolvidos em uma tarefa. Os
adultos, mesmo quando estão concentrados, continuam o bate-papo interno com
eles mesmos.
“O modo-padrão do cérebro ainda é um completo mistério”, diz a
neurocientista Patricia Reuter-Lorenz, pesquisadora da Universidade de
Michigan. Estar em constante reflexão pode nos tornar distraídos, mas também
pode ajudar a ter boas ideias. Isso explicaria por que adultos de meia-idade
têm o raciocínio afiado, embora não lembrem onde puseram a carteira.
O cérebro de meia-idade pode ganhar habilidades surpreendentes conforme
envelhecemos, mas isso não acontece com todos. Os cientistas perceberam que só
os adultos que sempre tiveram hábitos saudáveis e vida intelectual ativa
apresentaram a superativação.
Há indícios de que a prática frequente de
exercícios físicos promove o nascimento de novos neurônios em uma região do
cérebro associada à memória. E atividades que desafiam o cérebro, como aprender
uma nova língua ou até mesmo exercícios de memória, evitam que áreas do cérebro
“enferrugem”. É como se essas atividades criassem uma reserva de neurônios que
pode ser usada pelo cérebro quando ele entra em declínio. “Se a pessoa
conseguiu criar uma boa reserva, é provável que tenha mais mecanismos para
suprir deficiências causadas pelo envelhecimento”, diz o neurologista Ivan
Okamoto, pesquisador do Instituto da Memória da Universidade Federal de São
Paulo
Adultos que têm hábitos saudáveis
e mentes ativas
mostram cérebro de alto desempenho na meia-idade
Há poucos anos, a meia-idade
costumava ser considerada uma fase de crises, desencadeada pela percepção dos
primeiros lapsos de memória. Eles seriam sinal inequívoco da aproximação da
velhice e, consequentemente, da morte. A percepção da brevidade da vida
despertaria um conjunto de comportamentos chamado pelo psicólogo canadense
Elliott Jaques de crise da meia-idade – sim, a famosa. Entre os sintomas
descritos por Jaques no artigo de 1965 que deu origem ao termo estão
“preocupação doentia com a saúde e a aparência”, “promiscuidade sexual” e
“ausência de verdadeiro prazer em viver”. Esse tipo de comportamento pode ser
facilmente encontrado entre pessoas de meia-idade, mas o conceito não tem base
científica.
Jaques propôs sua teoria ao
analisar casos de artistas que teriam mudado o estilo de suas obras após os 40
anos – um grupo pequeno e específico demais. Um dos estudos mais abrangentes a
averiguar o nível de bem-estar nessa fase da vida mostrou que a maioria das
pessoas se diz mais feliz do que antes. Segundo levantamento com 8 mil
americanos da Fundação MacArthur, instituição privada de fomento à pesquisa nos
Estados Unidos, apenas 5% dos entrevistados apresentavam reclamações. E, mesmo
entre esses, a maioria já enfrentara problemas semelhantes em outras épocas – o
que isentaria a culpa da meia-idade.
Aos 52 anos, o físico Marcelo
Gleiser, professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, diz ter encontrado
serenidade, e não angústia. “Quando você fica mais velho, torna-se mais calmo e
seguro”, afirma. Ele diz ser capaz de escolher desafios com mais critério, para
concentrar tempo e energia em problemas que possa resolver. “Conhecer os
próprios limites dá paz de espírito.” Os estudos de neurociência sugerem que
essa pacificação interior também está relacionada a alterações do cérebro. A
equipe da psicóloga Mara Mather, da Universidade do Sul da Califórnia, mostrou
imagens tristes e repulsivas a voluntários maduros e a jovens. Concluiu que nos
mais velhos a área do cérebro responsável pelas emoções reagia menos às figuras
negativas. Concluiu que era um sistema de proteção. O cérebro parecia escolher
dar menos atenção ao lado ruim da vida. Há nisso mais inteligência e sabedoria
do que um cérebro jovem talvez seja capaz de perceber.
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