*João Malheiro
Não discriminar não significa ter
de tolerar as mesmas ideias, gostos, sentimentos, opções sexuais, ideais
políticos ou religiosos. Posso e devo discordar se penso diferente. Isso é
democracia, isso é pluralismo
Como educador e professor de
ética, tenho me preocupado cada vez mais com o ensino/aprendizagem de certos
conceitos que, quando não assimilados de forma correta, podem confundir os mais
superficiais. São as noções de tolerância, discriminação, verdade e opinião.
Na universidade me deparo com
frequência, pela temática que ensino, com o enfrentamento em sala de aula. Uma
vez ou outra explodem paixões juvenis, outras vezes escuto de forma indignada
frases como: “O Sr. está sendo muito intolerante com as suas opiniões”, “O
professor está discriminando uma parcela da faculdade com as suas verdades”,
“Mestre, a verdade é relativa!”, ou reações parecidas.
Confesso que necessito
grande dose de autodomínio e de inteligência emocional para compreender meus
pupilos e, em paralelo, manter um diálogo respeitoso, vivenciando esses
próprios conceitos. Acredito, portanto, que possa ser útil promover a reflexão
sobre os temas acima elencados, para não sermos conduzidos a engodos midiáticos
ou para nos prepararmos para futuros debates em diversos âmbitos educativos.
O sentido de tolerância que
adoto é do filósofo Tomás de Aquino, que criou o conceito no século XIII:
“Tolerar é permitir a existência de certos males menores para não provocar
outros males maiores e para não impedir certos bens maiores”. Tolerar é
permitir de forma bastante justificada certos males menores, não autorizá-los.
Existe uma diferença notável entre permitir e autorizar. Este último é dar
autoridade a alguém para que faça algo. No nosso caso, seria autorizar o mal e
converter, por um poder arbitrário e pela “magia” da tolerância, o mal em bem.
O autorizador, assim, tornar-se-ia corresponsável pelo mal. O que não seria
ético.
É preciso ser consciente de que, quando se é tolerante, o mal continua
sendo mal na perspectiva de quem permite. E que, mesmo sendo tolerante alguma
vez, nem sempre será possível tolerá-lo. Nesses casos é preciso ser
intransigente com o erro e o mal, o que não é intolerância.
Ora, numa sociedade
em que a confiança na razão como meio para descobrir a verdade foi aos poucos
dando lugar ao ceticismo, é fácil compreender porque as pessoas se confundem
entre o bem e o mal. E por que essa desconfiança na razão? Parece que os
inúmeros conflitos sociais com os quais a história do século XX e XXI nos tem brindado,
quase sempre por motivos absurdos e irracionais, como razões nacionalistas, de
religião, de domínio tecnológico ou econômico, sejam a sua causa principal.
No momento em que a força da
razão é enfraquecida, e que o julgamento ético vira uma questão de sentimentos
e preferências pessoais – fenômeno chamado pelo filósofo MacIntyre de
emotivismo, em After Virtue – são compreensíveis as reações explosivas de
algumas pessoas quando alguém lhes tenta mostrar, de forma racional, as diferenças
entre o bem e o mal, como aconteceu entre meus alunos e eu.
Eles se sentem como
sendo invadidos por uma autoridade despótica, que se intromete em sua liberdade
pessoal, ou pelo menos a cerceia. A sensação de desrespeito é real, pois falta
a participação da razão e da vontade para moderar e direcionar esses
“sequestros” emocionais para a reflexão. Os conceitos de intransigência e
discriminação acabam se confundindo, o que é um grande erro.
Ser intransigente é defender a
verdade que nos transcende. Significa, pelo menos, manifestar o direito de
discordar de alguém que apresente outra coisa como verdade, e, num diálogo
respeitoso, expor uma argumentação diferente, com fundamentos sólidos e
convincentes, de forma que ambos tentem honestamente vislumbrar um bem que os
una. Portanto, uma atitude bastante distante da violência e da arrogância.
Já
ser discriminador é algo bastante diferente. Significa dar um tratamento
desigual, seja favorável ou desfavorável, às pessoas em função das suas características
raciais, sociais, religiosas ou de gênero.
É um desrespeito à pessoa humana,
quase sempre numa atitude física ou psicologicamente violenta. Naturalmente, é
algo deplorável, que sempre será preciso combater. Entretanto, não existe
discriminação de ideias e nem de atitudes, somente de pessoas.
Caso contrário,
nenhum educador (pai ou professor) jamais poderia atuar em relação a seus
educandos, corrigindo-os, moderando-os ou até castigando-os. Infelizmente, é
exatamente esta mentalidade (corrigir como discriminar) que aos poucos vai
entrando em nossas escolas, com consequências incalculáveis.
Como aponta a doutora em
filosofia Ana Marta González, “o respeito se dirige ao homem que eventualmente
defende ideias opostas às nossas; a tolerância, às suas ideias” (“Las paradojas
de la tolerância”). Portanto, não discriminar não significa ter que tolerar as
mesmas ideias, gostos, sentimentos, opções sexuais, ideais políticos ou
religiosos. Posso e devo discordar se penso diferente. Isto é democracia, isto
é pluralismo. O contrário é ditadura, despotismo ou autocracia.
E como conviverão em paz
pessoas que pensam diferente? Como viver a tolerância, em casos como a
eutanásia infantil, o nudismo, o livre exercício de religiões minoritárias? A
resposta é complexa, mas a filósofa espanhola nos orienta: eticamente, com
respeito. Politicamente, com três critérios: buscar a solução em que a maioria
possa se abster; em que o prejuízo que se vá produzir nos outros seja o menor
possível; em que a subsistência da sociedade esteja sempre garantida.
*João Malheiro é doutor em
Educação pela UFRJ.
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